No dia em que o caminho de Rute cruzou o meu, ela tinha nove anos. E nunca morado em uma casa de verdade. Sempre vivera com a família em barracos de assentamentos, aguardando. No dia em que o caminho de Rute cruzou o meu, ela estava prestes a se mudar para uma casa de verdade pela primeira vez.

Rute era linda. Tinha o cabelo crespo, tipo afro, mas muito loiro, todo bem pra cima, o corpo magrinho e um sorrisão de criança esperta. Para muitas coisas, era a guia da mãe, pois já sabia ler e a mãe nunca aprendera. Rute ajudava a cuidar do irmão e brincava com um gatinho. Gosto de pessoas que brincam com gatos, pois gente que gosta de gato em geral se reconhece e desenvolve uma espécie de sintonia imediata.

Eu simpatizei imediatamente com Rute. Seria apenas um trabalho de free-lancer: fui a Barra do Bugres, conhecer de perto umas casas populares – ops, habitações de interesse social – que estavam sendo construídas com materiais e técnicas que baixavam o custo e melhoravam o conforto. Era um projeto da antiga Escola Técnica Federal de Mato Grosso e minha tarefa se resumia a apurar e divulgar. Eu não contava com a presença de Rute.

Em primeiro lugar, ela era alegre. Empolgada. Levava uma vida super complicada. A mãe tinha a minha idade hoje – uns 34 anos- mas parecia ter bem mais. O pai se envolveu na construção da casa nova, uma das exigências mais bacanas do projeto. Todos tinham coisas para contar, mas Rute era a figura central da família, que parecia costurar os demais elementos juntos. Entrevistei a mãe, o pai, os engenheiros. Mas a estrela era Rute. E ela se saiu bem. Quando perguntei qual seria a primeira coisa que faria quando se mudasse, ela nem hesitou: “vou plantar um girassol”.

Ela me fez chorar. Mudou todo o enfoque da minha matéria, que de texto técnico passou a humano. De release se transformou em matéria domingueira, gostosa de escrever. Mudou a minha forma de olhar o meu filho, que nunca deixou de ter quatro paredes e um colchão macio para dormir. Nunca me esqueço que recebi um elogio da colega Nadja Vasques, então editora de jornal, pelo texto pronto. Eu perguntei se ela teria interesse em avaliar para publicar. Ela aceitou avaliar, sem prometer nada. Pouco depois, me ligou e disse que havia gostado mais do que imaginara que iria gostar. Ganhei página inteira, fotos e chamada de capa. Quer dizer, foi Rute quem ganhou, com seu girassol.

O que eu ganhei mesmo foi lição de vida. Reclamo demais, sou ranzinza demais. Quero demais, me preocupo demais. E estou sempre à procura do terreno perfeito para plantar meu girassol. Rute me mostrou que isso não existe: o terreno só fica perfeito depois que plantamos o girassol nele. Ela era toda linda na sua simplicidade de cabelo arrepiado e gatinho no colo, esperta, lendo os documentos importantes para a mãe. Ela provavelmente nem se lembra de mim, mas eu me lembro sempre dela, rezo para que esteja bem. Deve ser uma mocinha, agora. Tomara que tenha conseguido se manter na escola. E que ainda leve em seu coração a cor e a luz de todos os girassóis do mundo.

Daniela Lepinsk Romio, é jornalista em Cuiabá e ainda não plantou seu girassol, mas fará isso em breve. E-mail: jornalista.daniela@uol.com.br