Antes de professar, confesso: nunca consegui viver sem elas, as professoras.

A que me deu à luz, logicamente, foi a mais importante. Apesar de não ter diploma, me ensinou os primeiros letramentos do mundo. O mundo das linhas curvas, do berço, do afeto e da alegria de viver. Me cantou cantigas de ninar passarinho-curió. Me apresentou às formigas, ao cachorro, às andorinhas e às galinhas que ciscavam no terreiro. E era uma casa tão pequena que, de tão pequena, não acabava nunca. Ali ela acompanhou meus primeiros tombos e destinos.

Me mostrou também as coisas ruins. Como a tomada, onde um dia escarafunchei – com a ramona caída de seus cabelos – o bicho-papão da eletricidade.

Esta, minha mãe-professora, me protegeu do frio, do amargo, do azedo. E do escuro. E do barulho do silêncio.

Um dia me exibiu ao sol, à lua e às estrelas. E deve ser por isso que nunca mais voltei ao chão. Fiquei pairando sobre nuvens desgramáticas, entre a realidade da pedra e o sonho da água. Com a cabeça cheia de gravetos.

Essa foi a professora de minha gênese, Eugênia, com seus letramentos maternos. A que me ensinou as linhas sinuosas, essas que voltam sempre ao mesmo ponto de partida, mas com a alegria do reencontro. Mesmo porque em Passos, cidade onde nasci, os passos são feitos para ir – no vem-vindo – e chegar – no vai-e-volta – mas nunca voltar pelo mesmo caminho, ou pela mesma porta…

A segunda me instruía que o redondo mundo a que eu estava habituado podia ser também quadrado, triangular, pontiagudo, comprido. Mais comprido que os carretéis de linha.

Puxando pelo fio do passado, lá estava ela no seu castelo de fadas, duendes, gnomos, bruxas e pelandrujas. Com ela consegui passar pelo buraco de uma agulha, sem ser visto. Conversei com os sapos. Entendi a língua dos gatos e dos papagaios. E também as vozes do vento, o dialeto dos fantasmas, dos seres invisíveis que povoavam o castelo depois que a noite despencava das mangueiras.

Esta me letrou que o medo é o melhor caminho da coragem. Porque, para se ter coragem, é necessário chorar. E um homem só seria um homem se fosse capaz do recuo, do retorno, do “passar a limpo”.

Ela era a avó de todas as coisas. E se chamava Sebastiana, às vezes Madrinha, às vezes Zindinha: as que me contavam histórias do mundo comprido, dos letramentos da linha reta.

A terceira fez minha cabeça.

Mas, antes, me lecionou que cabeça não era só para decorar pescoço.

Fez de conta que eu era um engenheiro de nuvens. E me entabulou que 4 nuvens menos 2 davam um céu limpinho, ensolarado, bom pra caçar borboletas, cigarras, calangos e lagartixas ilustradas num livro ou num dicionário.

Depois, fez de conta que eu era um poeta de carne e osso. E me soletrou que 4 nuvens vezes 2 davam 3 vendavais, 2 temporais, 1 furacão, 1 maremoto e outro terremoto.

Talvez, coisas ruins para a construção de um edifício plural. Por isso pôs alicerces nos meus verbos, vigas de sustentação nos predicados, pilares nos sujeitos e telhados nos adjetivos raquíticos.

Me enredava numa espécie de redação-locomotiva que puxava vagões de idéias vagas, que puxavam outras idéias, de outras vagas locomotivas… No dia do meu aniversário ela me deu um livro de presente. E ordenou:

- Leia, releia e vá relendo!

Com o tempo, folheou-me os capítulos do mundo de dentro. E descobri que não precisava mais pegar o cavalo no pasto, arreá-lo e sair por aí cavalgando o que havia no onde, que estava no como, depois do por que, que desembocava no quando. Era só passar a página e lá estava a resposta da pergunta sem fim…

Essa professora (que também era nossa mãe, dona, tia, prima, irmã, amiga) se chamava Gilda. Mas podia ter um monte de outros nomes: Magda, Guida, Zininha, Zélia, Marilu, Isabel, Miriam, Ivanise. Ou o nome de várias Marias: de Lourdes, Antonietas, Eneidas, Letícias, Luízas, Nádias, Melânias, Ângelas, Rozários, Márcias, das Graças…

Por causa delas, as professoras, o mundo continua redondo.

Com as linhas que me deram, posso agora tecer e bordar palavras. Ou rebordar os meridianos nos trópicos. Os paralelos nas latitudes. E as latitudes nas longitudes que ponteiam minha imaginária geografia. Minhas passageiras transversais do mundo.

Por causa delas imagino que posso, que sou, que sei, que serei.

Mesmo porque, com elas, aprendi que mestre é aquele que – de vez em quando – também faz de conta…
O CRONISTA
Antonio Barreto é escritor e colaborador do naSavassi. Recentemente, lançou, no Palácio das Artes, seu livro, Vagalovnis, pela Autêntica Editora.
"Há alguns anos, resolvi encarar a literatura. Comecei a escrever poemas, contos, romances, novelas, crônicas e literatura infanto juvenil. Livros que me valeram prêmios importantes. Também gosto de desenhar, fazer colagens e experiências visuais com palavras e imagens. Como os rascunhos que concebi para este livro, agora tão belamente recriados pelo Diogo Droschi."
Contato: antonioba@uol.com.br

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