Odenildo Sena*


Éramos fãs incondicionais daquela criatividade de mãe. E esse sentimento não se limitava apenas aos frangotes. Os mais taludinhos e até os já marmanjos, quase donos de suas ventas, como ela bem dizia, não hesitavam em rodeá-la naqueles encontros diários que aconteciam como extensão do horário do almoço, quando nos dávamos conta de que os surrados pratos de esmalte, nas cores branca e azul-anil, já estavam vazios e praticamente lavados pelo cuidado que tínhamos de nada deixar sobrar. Afinal, pai já havia partido e deixado a viúva com oito rebentos em diferentes idades, quatro agregados, aluguel pra pagar e um salário mínimo por mês, fortuna que mãe administrava como um gênio de causar inveja aos prêmios Nobel de economia. Era, portanto, atribuição exclusiva dela distribuir, com parcimônia e justiça salomônica, o que nos cabia em cada refeição.
Sabíamos, entretanto, que os pratos vazios nos encarando da grande e retangular mesa de madeira tosca não significava o fim daquele momento sagrado em família. A ordem não era, ainda, para a dispersão. Com o infinito amor que só as mães trazem consigo, mãe tinha sempre uma carta na manga para nos surpreender. Na verdade, aquele gesto era recorrente, já esperávamos por ele porque ela assim nos havia acostumado, mas sabíamos traduzi-lo no inesperado, no sempre novo. Como um anjo afeito a poderes que fugiam ao nosso controle de criança, mas não à nossa imaginação, enquanto baixávamos a cabeça para dar conta da parte que nos cabia no almoço, mãe conseguia o extraordinário milagre da multiplicação: a comida em seu prato estava praticamente intacta. Com o semblante prenhe de ternura, fazia um suave movimento com a cabeça e conduzia nossos olhares na direção de seu prato. Viram? Nem tudo está acabado. Milagres existem! Era a senha para nos acomodarmos em seu redor e desfrutarmos dos quitutes do dia.

Até hoje tenho dúvidas se alguém conseguia, melhor que mãe, uma consistência tão firme na arte de preparar capitães. Ora vejam, mergulhei profundo no passado sem me dar conta de que provavelmente pouquíssimas pessoas sabem hoje o que isso significava. Explico. Mãe salpicava uma farta porção de farinha sobre o feijão em seu prato e mexia por alguns minutos os dois ingredientes, assim como quem prepara cimento. Suas mãos, hábeis e em movimentos intermitentes, faziam a vez da colher de pedreiro. E nossos olhinhos infantis, ansiosos pelo desfecho, acompanhavam com enorme atenção aquele processo. Quando feijão e farinha deixavam de existir e davam lugar a uma massa seca e liguenta, era chegada a etapa por quem nosso desejo dobrava. Mãe passava a trabalhar apenas com a mão direita. Amassava com paciência, na palma da mão e entre os dedos, uma porção daquele produto até ele adquirir uma consistência mais sólida e forma de um bonequinho. Estava pronto o capitão. E ela mesma, com o carinho que só as mães têm, fazia com que chegasse à nossa boca, um a um, como quem distribuísse a comunhão aos seus fieis. Começava, é claro, pelo mais frangote, prerrogativa da qual eu nunca abria mão.Pouco mais tarde, já deixando a infância e num lampejo juvenil encharcado de emoção, me dei conta de que, naqueles milagres de multiplicação de alimentos operados por mãe, estava a mais sublime prova de seu amor: renunciava sua quota em favor de todos nós. Coisas mesmo de mãe.

Odenildo Sena *