O Brasil deu um salto civilizatório ao proibir em escala nacional a fumaça de cigarros em ambientes fechados. Milhões de vidas serão salvas graças a esta decisão nacional. É surpreendente que outros problemas igualmente graves não sejam enfrentados com a mesma vontade, para que o salto seja ainda maior.

Não se vê como igualmente grave, o problema do analfabetismo de adultos que já deveria estar resolvido há décadas. O fumo mata por câncer, o analfabetismo impede a vida plena de um adulto na vida moderna. Mesmo assim, continuamos aceitando a morte cívica de dezenas de milhões de brasileiros ao longo das últimas décadas. Não percebemos que, na semana passada, completamos 122 anos de República, com uma bandeira que não é reconhecida por 13 milhões de brasileiros adultos. Eles não sabem a diferença entre as palavras “Ordem e Progresso” ou quaisquer outras que forem escritas.

Nem nos incomoda tanto quanto a fumaça de cigarros, o fato de quase 10% de nossas crianças chegarem a 4ª série sem saber ler. Por ser tratado pela média, esse percentual não reflete a gravidade do problema ainda maior sobre as camadas pobres.

Estamos enfrentando o grave problema de cigarro na saúde pública, mas fechando os olhos à permanência da pobreza, característica da sociedade brasileira.

Aceitamos como natural que milhões de crianças trabalhem em vez de estudar. Mesmo que livres do fumo, essas crianças não terão futuro melhor do que a vida dos fumantes. Uma parte delas trabalha na prostituição. Não estamos vendo isso como uma tragédia ainda pior do que o fumo. Se víssemos, seria possível uma ação tão forte como a lei antitabagista, abolindo de vez a possibilidade desse tipo de condenação de nossas crianças.

Paramos o fumo, mas não paramos a exclusão de milhões de crianças, adolescentes e jovens que abandonam a escola antes do final do ensino médio, nem a exclusão dos que terminam em pseudo-escolas, sem a menor qualidade para oferecer o ensino que eles precisam para enfrentar a vida moderna.

Descobrimos o absurdo de permitir fumantes dentro de espaços públicos, mas não estamos vendo o absurdo de classificarmos as escolas como boas e péssimas. Aceitamos como absolutamente normal, a imoralidade de hospitais bons e ruins conforme o dinheiro da pessoa. O dinheiro age como a fumaça do cigarro, no sentido contrário, quanto mais dinheiro menos doença e risco de morte. Felizmente, já não aceitamos a fumaça dos cigarros levando brasileiros à morte, mas aceitamos que a morte chegue aos que não têm dinheiro para pagar a um bom médico e comprar bons remédios.

Também não enfrentamos com rigor o problema da corrupção em todas as esferas de nossa vida social, especialmente na política. O fumo é uma forma de corrupção que pesa sobre a saúde das pessoas, assim como a corrupção pesa sobre a saúde pública, pelo desvio de verbas, pela vergonha, pelo péssimo exemplo dado à nossa juventude.

A proibição de cigarros foi um avanço social de grande importância, mas não tratamos com a mesma preocupação e rigor o problema da violência. Tratar a violência apenas como assunto de polícia e cadeia seria o mesmo que tratar o câncer apenas como questão de remédios e hospitais, esquecendo a proibição de cigarros em ambientes públicos.

Esta tolerância com os grandes problemas decorre de outra fumaça que encobre a realidade, nos embrutece e tira nossa perspectiva: a fumaça ideológica criada pelo vício de séculos a olhar os defeitos do nosso país como se fossem resultados de causas naturais. Em um artigo que virou pequeno livro, "A arte de não ver os pobres", J. K. Galbraith mostra como as elites fazem a pobreza ficar invisível.

Durante 350 anos, uma fumaça nos impediu de ver a escravidão como problema social ou ético. Era vista até como solução econômica. Com a abolição aquela fumaça se diluiu, mas não acabou. Continua nos impedindo de ver a profundidade de cada um dos nossos problemas. A fumaça de cigarros e suas conseqüências serviram para nos despertar e dotarmos medidas corretas, com coragem e vigor. Mas a outra fumaça, da inconsciência e do egoísmo, esconde os trágicos problemas da pobreza.

Somente quando esta outra fumaça desaparecer, é que vamos agir com o mesmo rigor e coragem com a qual enfrentamos o câncer provocado pelo cigarro.

* Cristovam Buarque é professor da UnB e senador do PDT-DF